O artigo é uma boa descrição de um dos principais projectos em que estou agora envolvido em Kakuma.
A Clotilde Giner é a Project Director do JRS e
coordenadora do programa JC-HEM no campo de Dzaleka, no Malawi.
Tecnologia posta ao
serviço de refugiados
que vivem em situações de isolamento.
por Petra Dankova e
Clotilde Giner
A ausência de oportunidades de educação para refugiados,
muitos dos quais têm de deixar as suas terras antes de poderem completar a sua
formação, é hoje um problema amplamente reconhecido.
Tirando partido das novas tecnologias da informação e da
evolução do acesso à Internet no continente africano, a iniciativa do Serviço
Jesuíta aos Refugiados Jesuit Commons – Higher Education at the
Margins (JC-HEM) lançou em 2010 um programa piloto de educação de nível superior
para refugiados, ligando professores universitários dos Estados Unidos com estudantes
em campos de refugiados em
Kakuma no Quénia e em Dzaleka no Malawi (1).
O programa JC-HEM permite aos refugiados a possibilidade de obterem no final um diploma em Artes Liberais (Diploma in Liberal
Studies). O ensino é administrado em língua inglesa, através da internet.
Em cada ano inscrevem-se cerca de 30 estudantes em cada um
destes cursos online. O princípio é simples: equipas voluntárias de professores
nos Estados Unidos dão formação aos estudantes, disponibilizando ajuda online para
os estudos e classificando com notas os trabalhos e as provas prestadas pelos
estudantes. O sistema americano de créditos permite contornar o problema do ‘permanentemente
temporário’ enfrentado pelos refugiados nas suas vidas. Cada uma das cadeiras
de oito semanas corresponde a créditos que poderão depois ser transferidos para
outras universidades.
A Tecnologia
Cada um dos locais de ensino está equipado com uma sala de
computadores com ligação à internet, assistidos por um responsável de IT local
(que pertence à equipa) e um refugiado assistente de IT. Conseguir fazer que
tudo funcione bem, sem cortes de energia devidos a problemas técnicos ou rupturas
é um desafio diário. A aquisição inicial de equipamento informático tem também
de incluir material suplementar de reserva, para ajudar a lidar com esta
realidade.
Em Kakuma existe uma ligação regular à internet, fornecida
através de um sistema WiMAX(2) por um fornecedor queniano local; esta opção
revela-se mais barata do que a ligação por satélite, a qual era anteriormente a
única ligação disponível em lugares remotos como este. O campo de refugiados de
Kakuma está localizado numa área semi-desértica no noroeste do Quénia, a
aproximadamente 95 Km
sul da fronteira com o Sudão. As temperaturas oscilam entre os 30 e os 40 graus
Celsius e as tempestades de areia são comuns. Para poder proteger o
equipamento, as salas de computadores precisam de dispor de janelas de vidro (algo
não muito comum no contexto local) e também de ar condicionado, por forma a manter
uma temperatura moderada na sala de computadores e na sala do servidor.
Em Dzaleka foi instalado um sistema de painéis solares que
proporciona um fornecimento constante e renovável de energia. Infelizmente,
porém, este sistema foi danificado por uma sobrecarga de tensão. Não dispondo localmente
de peritos em energia solar, o material danificado teve de ser enviado para a
África do Sul, para ser reparado, e o programa ficou sem uma fonte regular de
energia durante mais de dois meses.
Organizações eventualmente interessadas em montar um
programa semelhante não devem ignorar o investimento inicial que é preciso fazer para se poder lançar uma iniciativa de ensino através da internet. Computadores modernos e edifícios
seguros, um fornecimento estável de electricidade e uma ligação rápida à
internet são requisitos essenciais, sendo também necessária dispor de
especialistas técnicos no terreno.
“Isto lembra-me
sempre de que eu ainda estou no campo, onde as coisas não podem mudar de um dia
para o outro”.
Maurice, estudante de 35 anos da R.D. Congo, em Dzaleka.
Em Dzaleka, um pequeno internet-café com 12 computadores é
o único local onde, supostamente, são satisfeitas
as necessidades de ligação à internet de mais de 14.000 refugiados. Alguns
deles têm a sorte de ter um telemóvel com acesso à internet. Utilizar um
telemóvel é, porém, muito caro. E, por outro lado, a rede também é lenta e
muitas vezes não está disponível.
“A falta de acesso à
internet deixou os refugiados encerrados na era do neolítico, enquanto o resto
do mundo vive na era da internet”. Paul, estudante de 45 anos do Ruanda, em Dzaleka.
As leituras requeridas, bem como as lições gravadas em
vídeo, são descarregadas num servidor local, nas horas em que a internet
tem menor uso, sobretudo à noite. Os estudantes podem também fazer pesquisas na
internet ou utilizar a biblioteca online da Universidade de Regis nos Estados
Unidos, e comunicar com os seus professores. Por não haver
horários de aulas, e por se poder aceder a materiais escolares sempre que for preciso,
os estudantes têm uma maior flexibilidade e estão assim mais aptos para conseguir compatibilizar as suas
responsabilidade académicas com trabalho voluntário no campo, com
os seus deveres familiares e com o esforço – tantas vezes esgotante – que o
dia-a-dia da vida de um campo de refugiados requer.
O Ensino
Antes de se ter inscrito no curso online, a maioria dos
estudantes do programa tinha raramente usado computadores ou internet.
Apesar de no início do programa ser oferecido um ‘bridge course’, concebido
para oferecer aos estudantes conhecimentos básicos no uso de computadores, bem
como aperfeiçoar o seu inglês e as suas capacidades académicas de
escrita, a aprendizagem dos estudantes ao longo do curso foi bastante intensa.
Os estudantes tiveram de se familiarizar com interfaces online; as suas
dificuldades evidenciaram a necessidade de terem um tutor que os possa apoiar no
local. As experiências até agora têm mostrado a importância de se procurar desenvolver boas
capacidades no uso dos computadores, antes de se lançar na aprendizagem de
alguma outra matéria.
“Ao princípio tive
dificuldade em utilizar [estes programas]. Não sabia onde é que podia encontrar
os comentários dos professores aos meus trabalhos, onde é que podia escrever um
email, ou para onde é que devia enviar o meu trabalho. Para esse tipo de coisas
era preciso eu ter alguém ao meu lado para me mostrar onde é que eu tinha de
clicar”.
Jean-Marc, estudantes de 23 anos de idade da R.D.Congo, em Dzaleka.
Antes de terem aderido ao programa, a única experiência de
ensino que os estudantes JC-HEM tinham tido tinha sido uma experiência de tipo
presencial. Os estudantes recém-chegados estavam um pouco preocupados em saber
se esta seria uma formação ‘a sério’ e como é que seria possível construir
relações sem interacção física directa. Surpreendentemente, após os primeiros
meses de ensino, as avaliações indicaram que, até agora, uma das
características mais valorizadas desta experiência tem sido a capacidade de se
construírem relações online, tanto com professores, como com outros estudantes.
“Estou surpreendido por
sentir que conheço algumas destas pessoas da internet melhor do que os meus
vizinhos na comunidade”. Yusuf, 24 anos, estudante somali em Kakuma.
Todos os estudantes elogiam os seus instrutores online por
“fazerem um verdadeiro esforço para compreender as dificuldades que os
estudantes possam experimentar nos seus trabalhos”. Da experiência tida com o primeiro
grupo de estudantes, parece que o intercâmbio de informação, as fotografias e os
vídeos são algo de importante para ajudar tanto estudantes como professores a
compreender melhor o contexto uns dos outros.
Após terem sido feitas as primeiras cadeiras, tornou-se
óbvio que não são apenas os estudantes que beneficiam. Alguns dos professores
constataram que o facto de darem aulas a refugiados alterou o seu modo de ver
alguns textos e alguns temas, e desafiou-os a adaptarem o currículo às
experiências particulares e aos interesses de aprendizagem dos estudantes
refugiados, cujas experiências de vida são muito diferentes das dos estudantes
típicos dos Estados Unidos que se inscrevem nestes cursos online. Os
professores referiram que estas experiências irão também influenciar o modo
como eles ensinam os estudantes dos Estados Unidos.
Programas Futuros
Os estudantes em Dzaleka viram a sua auto-estima e os seus
níveis de energia crescerem, defendendo também que “o uso da internet fez crescer o nosso estatuto no contexto dos refugiados” (Joel, 40 anos,
ruandês, estudante em
Dzaleka). Uma dimensão transversal a todo o programa JC-HEM é
o objectivo de utilizar a formação em benefício não apenas dos estudantes mas
também das suas comunidades. Tal como nos explica o Vincent, estudante congolês
de 31 anos de idade em Dzaleka, “Esta formação é uma grande oportunidade para
mim para poder ajudar e prestar assistência a várias pessoas de diferentes
comunidades”. Os responsáveis dos programas estão neste momento a pensar em
modos de permitir aos estudantes poderem contribuir também com algum retorno
para a comunidade, tal como com explicações a estudantes em escolas
secundárias, ou ajudando estudantes de computadores a utilizarem a internet.
Programas de educação online têm como finalidade
desenvolver capacidades de refugiados que, ao serem exilados, acabaram por ser colocados nas margens. É por isso crucial fazer com que as mulheres também possam
participar plenamente em iniciativas de ensino online. Apenas duas estudantes
num total de trinta em Dzaleka e sete num total de trinta e cinco em Kakuma
actualmente inscritas no curso de três anos em Artes Liberais são mulheres. Os
responsáveis tentarão fazer com que no próximo processo de admissão o número de
mulheres possa aumentar; ter mais mulheres em programas de educação superior
implica que tenha de haver serviços de creches para jovens mães, bem como
organizar iniciativas que ajudem a tomar consciência sobre questões relativas a
mulheres.
O uso da tecnologia para levar educação superior aos
campos de refugiados não é algo que possa dar solução às prolongadas situações de
refugiados. Mas é um meio útil de prestar assistência aos
refugiados para que, apesar de exilados, estes possam continuar a sua formação e desenvolver o seu potencial humano.
(1) Um programa semelhante para refugiados urbanos
está a ser lançado em Aleppo, na Síria.
(2) WiMAX (Worldwide
Interoperability for Microwave Access) é uma tecnologia de banda larga sem fios
para acesso fixo e móvel à internet.
As citações de estudantes de Dzaleka são baseadas em textos que foram escritos por 27 estudantes do programa. Os nomes dos estudantes foram alterados.